Prémio Nacional do Ensaio em Ética e Filosofia Prática


VI Edição do Prémio Nacional do Ensaio em Ética e Filosofia Prática_ 2019

A nossa aluna Maria Ana Dinis Correia da Silva, do 11.º ano, turma B, do Colégio Casa Mãe, obteve a Menção de MÉRITO DE PUBLICAÇÃO no Livro – Ensaios de Ética e Filosofia, com o seu ensaio de Filosofia, subordinado ao tema “O que vale mais: o sofrimento da verdade ou a felicidade da mentira?”.




O que vale mais: O sofrimento da verdade ou a felicidade da mentira?



Na atualidade vivemos numa sociedade extremamente hierarquizada, fruto do regime do poder que o dinheiro e os valores materiais representam. Esse poder desmedido controla o ser humano e leva-o a ser capaz de tudo para atingir os privilégios e virtudes que ambiciona.

O agente social e cultural, enquanto ser consciente e racional, está suscetível à influência de todas as formas e redes de comunicação, sendo que, ao pertencer a uma cultura, desenvolve ideias e conceitos que orientam as suas ações, bem como as crenças, que são facilmente moldáveis pela opinião daqueles que nos rodeiam, portanto estamos vulneráveis ao engano e à mentira, que, devido ao frequente uso, se tornaram vulgares, ao longo do tempo. O ato de mentir é mais ou menos tolerado conforme os valores de cada povo e de cada época.

Sendo um tema bastante discutido no quotidiano, é pretendido, através deste ensaio filosófico, refletir sobre o que é mais prudente e aconselhável: o sofrimento da verdade, ou a felicidade da mentira. Assim, procuro deliberar se a mentira é aceitável ou não, abordando casos específicos, ou se a verdade é a única opção, independentemente das circunstâncias e do sofrimento que causará. Note-se a importância de abordar este tema, uma vez que são evidentes dilemas diários com que as pessoas se deparam, situações em que ponderam se a verdade será a melhor opção, ou se será mais benéfico ocultar a mesma. Posto isto, pretendo analisar se estes dilemas existem e quais as situações em que a felicidade da mentira se sobrepõe ao sofrimento causado por uma verdade.

Segundo Brás (2018), entenda-se por felicidade o estado de paz, harmonia e bem-estar físico e psicológico que alguém sente. Será importante notar que num estado de felicidade, as emoções negativas e as experiências perturbadoras não incomodam tanto o indivíduo, sendo que este lhes dá menos importância. Muitos autores, como por exemplo Stuart Mill e Jeremy Bentham, defendem que a mentira poderá resultar na felicidade, ainda que efémera, podendo, para além disso, confluir em variados fins, desejáveis ou não, sujeitos a sofrimento ou não. Com efeito, de acordo com o autor Simon Blackburn, a mentira é a “afirmação deliberada de uma falsidade, com o objetivo de enganar ou ludibriar uma audiência (…)” (1997). Por outro lado, a verdade, entendida como “coisa ou facto verdadeiro”, de acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa (2018)  , poderá resultar em danos irreparáveis e em grande sofrimento, quando algo perturbante, inesperado, ofensivo ou desagradável é revelado. Por outro lado, possibilita clarificar situações, não induzindo os agentes em erro, levando a conclusões claras e evidentes.

            Sendo os debates entre a verdade e a mentira evidentes, há a necessidade de entender o conceito de ética, que conduz a todo um processo de reflexão sobre a honestidade e integridade. Deste modo, a ética consiste na reflexão sobre as normas, princípios e valores aceites por uma sociedade, havendo uma análise dos mesmos, que resultam em teorias sobre os fundamentos e princípios que suportam e estruturam os diferentes sistemas prático-morais. Assim, a ética relaciona-se com a intenção do agente, na medida em que deriva da sua consciência moral, visto ser um sujeito autónomo, que é capaz de autodeterminar o fim a que pretende alcançar com as suas ações.

Seguindo o raciocínio do psicoterapeuta e escritor Pedro Brás, no seu livro Manual de Psicoterapia HBM (não publicado), a mentira está inteiramente relacionada com o valor da honestidade. Honesto é aquele que valoriza a verdade, que não ludibria nem defrauda. Todos os valores que regem a vida humana são fruto de uma construção permanente que acompanha o indivíduo pela sua existência. Os valores são hierárquicos, sendo que estão ordenadas numa escala de maior ou menos importância. Esta hierarquia permite compreender como os seres humanos fazem as suas escolhas e avaliam as situações em função dos valores que adotam. Assim, cada sujeito constrói a sua escala de valores, em função das suas experiências de vida, e dos significados que lhes atribuem. Note-se que esta escala é contextualizada, em termos sociais e culturais, e, por essa razão, os critérios valorativos adotados traduzem as características da sociedade e da cultura partilhada. Todos os indivíduos hierarquizam os valores de forma diferente, agindo por isso, no seu dia a dia, também de diferente modo. O ser humano, decidindo de acordo com os seus valores, beneficia uns em prol dos outros, defendendo um Bem Maior, um conceito que define a importância que damos a duas ou mais circunstâncias em perspetiva, justificando-se, dessa forma, porque agimos contra os nossos valores. Desta forma, conseguimos encarar a mentira como um comportamento que o ser humano adota, defendendo um bem maior. Cabe ao indivíduo e à sua cultura definir a sua hierarquia de valores, encontrando Bens Maiores que a honestidade. Para melhor entender a definição de Bem Maior, pense-se no psicólogo Kohlberg (1963). Assim, este coloca a situação hipotética em que uma mulher estava gravemente doente e apenas um medicamente recentemente descoberto por um farmacêutico a poderia salvar. Uma vez que o mesmo se recusava a vender o remédio por metade do preço, que era tudo o que a mulher podia suportar, o seu marido, desesperado, decide assaltar a farmácia, revelando, então, que o seu Bem Maior é o bem-estar da família, e não o respeito pela lei nem pelo património do outro. Como exemplo da decisão em prol do Bem Maior, temos o aluno que mente ao professor para proteger um amigo, valorizando assim a amizade mais do que a honestidade, contrapondo com aqueles que se recusam a mentir para defender qualquer interesse alheio.

            Desde muito cedo, a sociedade encara o ato de mentir como algo condenável, ensinando às crianças o valor inigualável da verdade, adaptando este assunto para filmes, como é o caso de “Pinóquio”, ou para ditados populares, como “A mentira tem pernas curtas”, “Acha-se mais depressa um mentiroso que um coxo” ou “Quem diz a verdade não merece castigo”. Segundo uma grande percentagem da sociedade, a mentira está intimamente relacionada com a hipocrisia e com a maldade, servindo como uma ferramenta a favor do engano, no entanto, esta poderá derivar de uma tentativa de normalizar o comportamento do ser humano, de fugir à frustração sentida perante a inevitável condição humana de obedecer a um estereótipo estabelecido na sociedade, um ideal inalcançável. O ser humano não consegue lidar com a sua imperfeição, por medo da rejeição, pela insegurança, podendo recorrer a várias formas de ilusão para ser aceite numa sociedade de elite, em que a virtude máxima deixa de ser intelectual, mas sim física, como se verifica com a necessidade recorrente de utilizar Photoshop nas imagens, por exemplo. Podemos então afirmar que, sob determinadas circunstâncias, “A mentira sustenta a vida em sociedade, não queremos lidar com as imperfeições uns dos outros, justamente por acreditarmos nesse ideal transcendente de virtudes humanamente inalcançáveis” (in O quarto escuro). De acordo com a jornalista Ana Cristina Marques, no site Observador, “A mentira pode ser uma arma de defesa no mundo em que vivemos, mas carregá-la às costas tem custos pesados.”.

            O ato de mentir suscita diversas opiniões, variando, efetivamente, em função dos casos e das situações verificadas. Embora a mentira possa exercer um papel fulcral sob condições extremas, conduzindo à felicidade, em que as outras alternativas poderão conduzir ao sofrimento, o mais comum é esta surgir para benefício próprio, derivando do egoísmo, o que poderá ser condenável, visto não evitar o sofrimento, mas sim adiá-lo. Por exemplo, note-se que manter um relacionamento de mentira, apenas pelas aparências, é adiar uma dor e torná-la mais intensa com o passar do tempo.

Para além disso, e mesmo que desejemos e estejamos determinados a viver sem ilusões, em várias situações do quotidiano dizemos, mesmo que inconscientemente, mentiras minoritárias, de pouca gravidade, mas que mesmo assim afetam a vida do próprio e de quem o rodeia, como é o caso da mentira “Estou quase a chegar!”, onde o que pretendemos é não preocupar o outro, ou então a tão comum frase “Não recebi esse email com as informações do trabalho”, cujo objetivo é evitar a realização uma tarefa. Todavia, existem mentiras cuja finalidade é ludibriar gravemente o outro, com repercussões permanentes, que não serão facilmente perdoadas, como é o caso daquelas cujo objetivo é a manipulação, por exemplo, os falsos testemunhos ou os discursos eufemísticos de alguns políticos, cujo objetivo é, simplesmente, atrair a população, de modo a conquistar vários votos, ainda que não se pretenda cumprir os projetos que são apresentados, o que poderá resultar em fragilidade política e económica, vulnerável à corrupção. Em adição, as mentiras que derivam do egoísmo, em que o indivíduo pretende alcançar o bem-próprio, descurando a felicidade comum, levando a traições, podem originar diversos conflitos, estando essas relacionadas com a hipocrisia e a malícia, não conduzindo à felicidade. Pode-se, então, afirmar que existem vários tipos de mentiras, as sociais, as narcisistas, as psicopáticas, para salvar a vida a alguém, aos companheiros, mentiras de trabalho, falsos testemunhos, entre outras.

            As causas das mentiras são complexas, variando consoante os motivos. Por forma, o ato de ludibriar pode surgir por várias razões, ou por receio das consequências, quando se teme que a verdade traga consequências negativas, ou insegurança ou baixa autoestima, ao pretender fazer passar uma imagem de nós próprios em que nada corresponde à realidade, apenas para impressionar os que nos rodeiam, por razões exteriores, em que somos influenciados por condicionantes externas ou por motivos de autoridade, por ganhos ou regalias, sendo que a mentira traz benefícios próprios, como vantagens adicionais, ou por razões patológicas.

            A mentira existe ao longo de toda a escala patológica, podendo ser verificada em várias condições mentais. Assim, nos estados neuróticos, a mentira surge como uma incapacidade de a consciência aceder a fatos reais, sendo uma mentira involuntária. Nas psicoses, a mentira apresenta-se na forma de delírio, devido a essa quebra de contacto com a realidade. No entanto, nestes casos, não é prudente culpabilizar os indivíduos da mesma forma que faríamos caso estes não evidenciassem fragilidades cognitivas, visto tratar-se de condições mentais, que não são controladas pelo agente.

Recorrendo à ideologia cristã, a mentira é encarada como um ato punível, remontando aos tempos em que Adão e Eva habitavam o paraíso tendo sido ela a responsável pela expulsão de ambos. A verdade é a privilegiada, ainda que seja acompanhada pelo sofrimento. Assim, de modo a comprovar a reprovação pela mentira, é evidente, na Bíblia, o livro sagrado, a expressão “Não furtem. Não mintam. Não se enganem uns aos outros”, de modo a convencer os fiéis a optar pelo caminho virtuoso da verdade. Por conseguinte, Jesus e os seus apóstolos defendem que toda a desonestidade é pecado e desagrada a Deus, que nunca mente. A mentira e o engano conduzem a vários conflitos na vida e quem é desonesto não é digno da confiança das outras pessoas, na medida em que a verdade traz liberdade. Note-se que, como forma de reprovação do ludíbrio, o diabo é descrito da Bíblia como “o pai da mentira”. É evidente que a honestidade interior significa reconhecer os seus pontos fracos e fortes e não acreditar em mentiras.

Vários filósofos e escritores tentaram perceber o papel da mentira e a sua necessidade. Posto isto, Aristóteles, um pensador grego, apenas aceitava a ilusão como forma de diminuir ou aumentar a verdade. Também o teólogo Santo Agostinho, no século IV, descreveu vários tipos de mentira, aquela que prejudica alguém, mas beneficia outros; a que aflige uns sem favorecer outros; a que se comete pelo simples prazer de mentir; e aquela considerada a mentira benéfica, que tem a capacidade de salvar a vida de uma pessoa, protegendo-a do sofrimento. A apoiar este último ponto, está Confúcio, um filósofo chinês, que recomendava o uso da mentira apenas se a verdade prejudicasse uma família ou nação.

Platão, filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, através da imagem da “Alegoria da Caverna”, retrata um mundo onde a ilusão é entendida como realidade. Relata, então, a história de vários prisioneiros que estão acorrentados desde que nasceram, conseguindo apenas visualizar uma parede de pedra, onde são projetadas diversas sombras, causadas pelas pessoas que caminham atrás dos prisioneiros. Note-se que essas sombras são a única realidade que os indivíduos conhecem e os ecos da caverna são, para eles, causados por estas. Para melhor compreender esta situação, imagine-se que aparece a sombra de um livro. O indivíduo iria afirmar que aquilo era, de facto, um livro, e não alegaria que se tratava de uma sombra, porque a sombra não é um conceito inerente à sua realidade. Supondo que um prisioneiro era libertado, ao ter contacto com os objetos físicos, não os iria conseguir reconhecer, já que para o agente, aquele objeto físico seria a sombra daquilo que era projetado na parede. Deste modo, a ilusão desse objeto pareceria mais real do que o objeto físico. O prisioneiro afastar-se-ia da luz do exterior, voltando para a caverna, em que as sombras eram, para ele, mais reais. Porém, considerando que o prisioneiro acabaria por entender que a realidade da caverna não era a correta, mas sim a do exterior, este decidiria libertar os restantes. Os demais cativos, ficando surpreendidos e atordoados com o que o agente lhes relatara, e achando estranho o facto de este ter dificuldade em adaptar-se, novamente, à escuridão da gruta, julgam-no ignorante e ameaçam matá-lo, caso ele os liberte, visto a caverna e as sombras serem as únicas verdades que conhecem, não estando dispostos a estabelecer contacto o exterior, que para eles seria uma ilusão e os levaria à loucura.

Com esta situação, Platão compara os prisioneiros acorrentados com as pessoas que vivem na ignorância e que não pretendem conhecer a verdadeira realidade, o funcionamento das coisas, a origem do pensamento. Por outro lado, o indivíduo libertado representa o filósofo, que busca a verdade, saindo da sua zona de conforto, ou seja, da realidade visualizada. De facto, podemos aplicar a teoria de Platão à questão colocada na formulação do problema do ensaio. Assim, as pessoas condicionadas a uma determinada realidade são aquelas que vivem na felicidade da mentira, enquanto que quem se consegue libertar das correntes do desconhecimento e da ingenuidade vive incompreendido pelos seus contemporâneos, vivendo em sofrimento, mas, pelo menos, alcançara a verdade, sendo evidente o tópico do sofrimento da verdade.

Com o objetivo de esclarecer o papel da verdade e da mentira na sociedade básica, surgem teorias concorrentes: a ética deontológica de Kant, que defende que o valor moral de uma ação depende da intenção do agente, e a teoria utilitarista de Mill, que alega a moralidade de uma ação apenas com base nas consequências. Ao analisar estas perspetivas é possível entender os critérios que nos permite distinguir uma ação moralmente correta de uma moralmente incorreta. Vários autores explicitam a contradição entre as teorias deontológica e utilitaristas, como é o caso de Simon Blackburn (1997), que ao definir mentira, alega que “A proibição de mentir em todas as circunstâncias (mesmo quando um homem louco com um machado nos pergunta onde dormem os nossos filhos) é um aspeto notório da ética de Kant. Por outro lado, as teorias consequencialistas e utilitaristas são frequentemente acusadas de não conseguirem explicar a gravidade peculiar da mentira, uma vez que certas mentiras têm poucas (se é que têm algumas) más consequências.”.  

            Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo alemão, fundador da “Filosofia crítica”, considerado o pai da filosofia moderna. Para Kant, a única motivação moralmente boa para as nossas ações é o cumprimento do dever, sendo que há ações que são certas ou erradas independentemente das consequências, pois a vontade bem-intencionada e uma intenção pura são as únicas coisas que tem valor absoluto, deixando-se influenciar exclusivamente pela razão. À vista disso, Immanuel Kant define como ações contrárias ao dever, todas aquelas que violam a lei, como por exemplo, mentir.

            Desta forma, o filósofo alemão apresenta o imperativo categórico, uma obrigação absoluta e incondicional em que a vontade é exclusivamente motivada pela razão, independentemente dos desejos, interesses e inclinações particulares. Ordena, então que uma ação seja realizada pelo seu valor intrínseco, e que seja boa por si, e não por causa dos seus efeitos.

            Ao abordar a deontologia, Kant e o imperativo categórico, é de extrema pertinência referir a fórmula da lei universal, que nos diz “Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que ela se possa tornar uma lei universal”, isto é, uma máxima é moralmente aceitável se puder ser universalizada. Em adição, e de modo a completar a tese anteriormente referida, temos a fórmula da Humanidade, em que cada ser humano é um fim em si mesmo, sendo moralmente errado usá-lo como simples meio de alcançar um objetivo, pois tem valor intrínseco absoluto. Assim, e tendo em conta estas duas fórmulas, o ato de mentir e enganar são condenáveis, independentemente dos seus impactos na medida em que não podemos permitir que essa lei se torne universal.

            Na perspetiva deontológica, deve-se ter em consideração fatores que permitam a integridade do ser humano, como é o caso dos direitos humanos e o próprio dever. Ao agir de forma imoral, Kant acredita que nos tornamos seres humanos menos racionais, o que enfraquece a nossa humanidade. Assim, censura a mentira, visto não poder ser uma máxima universal, afirmando a necessidade de dizer a verdade, sempre e em qualquer situação, independentemente de causar sofrimento.

            Em síntese, a ética deontológica de Kant, corroborada por mais autores, como John Locke (632-1704) e Thomas Hobbes (1588-1679), pelas suas teorias dos direitos naturais, afirma que devemos agir tendo em conta o dever, o respeito pela lei moral que adquirimos livre e racionalmente. Assim, as intenções das ações determinam a sua legitimidade: a ação é pura se a intenção também o for, isto é, se a motivação decorrer da autonomia da vontade, sem se desejar alcançar um dado objetivo.

            A ética kanteana enfrenta diversas críticas, nomeadamente, desculpa a negligência bem-intencionada. Assim, é possível que um agente, embora evidencie boas intenções, é tão descuidado que origina consequências desastrosas e indesejáveis, devido à sua incompetência e ignorância, concluindo-se, então que as consequências devem ter um papel nos nossos juízos éticos. Para além disso, existem situações que parecem obrigar tanto a uma ação como a outra incompatível com ela. Para melhor ilustrar esta situação, tome-se como exemplo o seguinte cenário: “Numa ditadura, uma família abriga um fugitivo político. A polícia bate à porta e pergunta se o fugitivo está naquela casa”. Seria possível agir segundo a máxima “protege os inocentes da tortura”, no entanto, isso não seria compatível com a máxima “diz sempre a verdade”, sendo que o imperativo categórico se contradiz, não aceitando a mentira, ainda que seja para poupar uma pessoa ao sofrimento. Desta forma, se um dever é não mentir, então é totalmente errado mentir, independentemente das circunstâncias, podendo concluir que a deontologia deverá atender às particularidades de cada situação, aplicando as regras a casos reais, e não as manter em abstrato.

            Outra perspetiva será a ética utilitarista ou consequencialista, em que a moralidade de uma ação tem como base as suas consequências, resultados e desfechos. O utilitarismo foi introduzido pelo filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832) que, influenciado por autores como Hume (1711-1776) e Hobbes, introduziu os fundamentos do utilitarismo no seu livro “Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação”. Posteriormente, a sua conceção consequencialista foi apoiada e aperfeiçoada por Stuart Mill (1806-1873), um admirador e seguidor de Bentham, cujas teorias partilhou no livro “Utilitarismo”, em 1861.

            De acordo com estes filósofos, as ações só são moralmente aceitáveis e corretas caso as consequências sejam agradáveis para o maior número de pessoas. Efetivamente, trata-se de uma teoria utilitarista, visto que considera a nossa obrigação moral básica agir tendo em conta os melhores resultados, sendo que a felicidade e o bem-estar são as finalidades últimas de todas as ações humanas, sendo que devem resultar no bem-estar para as pessoas que por elas são afetadas.

            De modo a corroborar esta perspetiva, são evidentes os princípios da utilidade / da maior felicidade elaborados por Jeremy e Mill, em que se defende que devemos agir de modo a que a nossa ação resulte no maior número de felicidade para o maior número de pessoas, “uma ação é aprovada quando tem a tendência de proporcionar e possibilitar a máxima felicidade” e “o credo que aceita a utilidade, ou Princípio da Maior Felicidade, como fundamento da moralidade, defende que as ações estão certas na medida em que tendem a promover a felicidade, erradas na medida em que tendem a produzir o reverso da felicidade. Por felicidade, entende-se o prazer e a ausência de dor; por infelicidade, a dor e a privação de prazer.”.

            Stuart Mill distingue, portanto, as ações moralmente corretas das incorretas. As primeiras têm as melhores consequências possíveis, atendendo às circunstâncias em que ocorre a ação, por exemplo, mentir para salvar a vida a alguém. As últimas são referentes às ações que trazem más consequências, em função das circunstâncias, como é o caso de mentir, prejudicando a vida de alguém, ou para benefício exclusivamente próprio.

            Segundo o admirador de Bentham, o ser humano é dotado de um sentimento natural, que o leva a cooperar com os outros e que os une, a simpatia social. Assim, e de acordo com o princípio da felicidade para o maior número de pessoas, é possível e apoiada a escolha racional e imparcial das possíveis ações que promovam o melhor para todos.

            A ética consequencialista parece exigir que mintamos, enganemos ou roubemos, desde que esse seja o caminho através do qual se alcança a felicidade máxima, como por exemplo, mentir para poupar alguém a grande sofrimento, ou roubar um medicamento para salvar uma vida. Da mesma forma, mentir de modo a satisfazer as próprias necessidades é uma ação moralmente incorreta.

            O grande defensor desta conceção, Mill, sustenta variações do hedonismo psicológico, a crença de que a vontade de sentir prazer e evitar a dor é a causa de todo o comportamento humano, ou seja, o ato certo é capaz de aumentar o prazer e reduzir a dor, derivando na felicidade. O bem-estar comum é o mais importante, sendo o somatório da felicidade das pessoas individuais dentro da comunidade. Como forma de resposta a vários críticos, Stuart Mill alega que a maioria das boas ações não visa o benefício do mundo, mas sim dos indivíduos que fazem parte dele.

Para além destas teorias, note-se a existência da ética da virtude, em que se destaca o carácter do indivíduo, pois aquilo que é analisado são as disposições de carácter que determinam os motivos dos quais resultam as ações que permitem às pessoas viverem bem em sociedade, ou seja, as virtudes, comportamentos e hábitos que permitem ter uma boa vida ou alcançar um estado de bem-estar.

De acordo com o meu ponto de vista, a tese de Stuart Mill, ou seja, a perspetiva utilitarista, é a mais sensata, logo, quando a verdade traz um sofrimento inútil a curto e longo prazo, defendo que a felicidade da mentira pode ser aceite substituindo o sofrimento da verdade. Para melhor entender o conceito de sofrimento inútil, imagine-se uma pessoa que tem que dar uma opinião sobre a beleza de alguém. O facto de o agente expressar opiniões negativas sobre o aspeto físico do outro indivíduo, apenas causará sofrimento e desconforto, sem que, com essa verdade, ajude ou beneficie a sua felicidade, sendo que essa verdade, em benefício do sujeito, pode ser omitida. Por outro lado, por muito que se queira evitar o constrangimento e o sofrimento da verdade, deveremos dizer a alguém que, por exemplo, tem mau hálito, porque assim estamos a ajudar a que a pessoa procure tratamento e mantenha uma higiene mais apropriada, logo, a vergonha que estamos a provocar, será minimizada pelo efeito positivo da nossa ação, podendo ser esse um exemplo de sofrimento útil, em que o sofrimento da verdade se sobrepõe a médio e longo prazo à felicidade da mentira.

 Assim, como Mill, afirma, uma ação é boa na medida em que contribui para promover o bem-estar e minimizar a infelicidade, resultando no maior número de felicidade para o maior número de pessoas. Entretanto, apenas resguardo esta posição caso a verdade cause, efetivamente, sofrimento inútil. Nessas circunstâncias, e caso a verdade possa ser omitida sem consequências relevantes, então devemos decidir pela mentira.

Esta perspetiva utilitarista é apoiada por bons argumentos, como por exemplo, o princípio da maior felicidade, em que a felicidade é a única coisa que realmente tem valor intrínseco, sendo que as ações são corretas se promoverem a felicidade, como é o caso de aceitar a mentira para salvar a vida de alguém, a felicidade de todos conta igualmente e devemos agir em função do hedonismo, ou seja, amplificar a felicidade e o prazer e diminuir a dor.

No entanto, a teoria enfrenta várias objeções, já que este aceita ações que são moralmente erradas como sendo moralmente corretas, como se verificada na crítica do bode expiatório, visto que ninguém deve ser condenado se for inocente, mesmo que isso resulte no maior número de felicidade para o maior número de pessoas. Para além desta crítica, surge outra de igual importância. Segundo o utilitarismo, seria moralmente correto provocar sofrimento a uma pessoa se daí resultasse poupar-se mais do que uma a igual sofrimento, pois o cálculo da utilidade de tal ação teria saldo positivo, por exemplo, matar alguém numa situação em que, se não o fizer, morrem muitos, todavia, e de acordo com Kant, não temos o direito de sacrificar alguém  para benefícios dos outros, pois, seguindo a fórmula da humanidade, todos os indivíduos deverão ser tratados como fins, e não como meros meios, o que será sempre um mal. Por fim, a mais famosa objeção ao utilitarismo é aquela que alega que esta teoria pode resultar em fins que não respeitem a integridade humana, nomeadamente direitos humanos como “Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.” ou “ Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.”, o que se pode comprovar com o caso do circo romano, enquanto que um cristão é torturado, milhares de pessoas sentem prazer ao assistir a esse ato. O saldo de felicidade abona a favor do público, mas é evidente o desrespeito pelos direitos humanos. De modo a responder a estas objeções, que confluem no mesmo ponto, ou seja, na violação dos direitos universais, os utilitaristas poderão aceitar todas as situações, exceto aquelas em que a integridade humana é ameaçada, ou seja, mesmo que a ação resulte no maior número de felicidade, se isso contribuir para o sofrimento de uma parte minoritária, deverá ser rejeitada. Evidentemente, uma ação é boa se resultar em prazer e na total ausência de dor, e respeitar os direitos humanos, impedindo que estes sejam ignorados, sendo que os consequencialistas aplicaram a máxima “a ação moralmente correta é a que segue uma regra cuja adoção produz um bem maior para a sociedade que adota o sistema de regras a qual ela pertence.”.

Uma vez que apoio a tese utilitarista, defendendo a felicidade da mentira nos termos já identificados, concluo que as ações devem resultar em felicidade, sendo possível mentir para alcançar esse resultado, desde que isso não interfira nos direitos universais de um indivíduo, não cause sofrimento inútil, não derive do egoísmo, tendo sempre em vista o bem-estar comum e não tenha efeitos indesejáveis a longo prazo. No entanto, se a situação verificada for de extrema importância, tendo efeitos notórios na vida de um agente, deveremos optar pela verdade, mesmo que isso cause sofrimento.

Para além disso, a boa intenção deverá derivar do bom senso, na medida em que as consequências deverão ser previstas, de modo a que o meio a que se opta para atingir um fim não poderá resultar em prejuízo para o outro, mas sim na felicidade. Por outras palavras, a situação ideal seria conjugar a boa ação com a felicidade, ou seja, através de um meio adequado, condicionado por uma boa vontade, atingir a felicidade geral.

Deste modo, a mentira é aceitável, desde que seja minoritária e benéfica, que evite o sofrimento inútil, contribuindo para a felicidade geral, e não decorra do egoísmo, ou seja, não tenha sido utilizada para benefício próprio, mas sempre em função do bem comum ou do outro, evitando repercussões graves a curto, médio e longo prazo.

 



Webgrafia e Bibliografia
















BLACKBURN, Simon (1997), Dicionário de Filosofia, Lisboa, Gradiva

BRÁS, Pedro (2018), Feliz para sempre, Lisboa, Planeta

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KLEINMAN, Paul (2018), Filosofia, Lisboa, Jacarandá

GALVÃO, P.; LOPES, A. (sem data), Preparação exame final nacional filosofia, Porto, Porto Editora

(2018) Dicionário da Língua Portuguesa, Porto, Porto Editora


Maria Ana Dinis Correia da Silva, 11.º B_Colégio Casa Mãe

2018/2019




 

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